domingo, 31 de julho de 2011

O gato preto

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram.

No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento - enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode se comparar ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia noturna - , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa - , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente - , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo - , pelo pavor extremo que o animal me despertava.

Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso - , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.

Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia - e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.

- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada - , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? - , estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco.

Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

Autor: Edgar Allan Poe

sábado, 30 de julho de 2011

O retrato oval

O castelo em que meu criado obrigara-se a forçar a entrada, evitando de deixar-me, em minha desesperada condição de ferido, passar a noite ao relento, era uma daquelas construções mesclando melancolia e grandeza que durante muito tempo elevaram-se entre os Apeninos, seja na realidade ou na imaginação da Sra. Radcliffe. Tudo indicava seu abandono temporário e recente. Acomodamo-nos num dos quartos menores e menos suntuosamente mobiliados. Este, situado num remoto torreão do edifício. Sua decoração era rica, porém avariada e antiga. As paredes assentavam tapeçarias e exibiam diversos e multiformes troféus heráldicos, juntamente com uma desusada abundância de espirituosas pinturas modernas em molduras de ricos arabescos dourados. Tais pinturas pendiam das paredes não só de suas principais superfícies, mas de muitos recessos que a bizarra arquitetura do castelo julgara necessários; telas a que talvez meu incipiente delírio investiu-me de profundo interesse. Em razão disso, tratei de ordenar a Pedro o fechamento dos fortes postigos do cômodo – pois anoitecera –, o acendimento de um alto candelabro que se encontrava à cabeceira de minha cama e a abertura completa das franjadas cortinas de veludo negro que envolviam o leito. Queria que tudo fosse arrumado para que pudesse, caso não adormecesse, distrair-me entre a contemplação das pinturas e a leitura de um pequeno volume que achara sobre o travesseiro, contendo a crítica e a descrição delas.

Por longo, longo tempo li, e devotadamente fitei as obras. Rápidas e gloriosas, as horas voaram trazendo a meia-noite. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade, para não perturbar o sono de meu criado, mudei-o a fim de que sua luz incidisse mais em cheio sobre o livro.

Todavia, a ação produziu um efeito imprevisto. Os raios das numerosas velas – eram muitas – agora iluminavam um nicho do quarto que até aquele momento estivera coberto em intensa penumbra por uma das colunas do leito. Deste modo acabei vendo, assomado pela vívida luz, um quadro que não notara antes. Era o retrato de uma jovem, quase mulher feita. Olhei-o rapidamente e fechei os olhos. Não logrei explicar a princípio os motivos de meu ato à minha própria percepção. Mas enquanto tinha as pálpebras destarte fechadas, recapitulei na mente minha reação de tê-las descido. Fora um movimento impulsivo com o intuito de ganhar tempo para pensar, certificar-se de que os olhos não me enganaram, acalmar e predispor minha fantasia para uma observação mais moderada e racional. Instantes depois, novamente fixei o olhar na pintura.

O que agora via, não poderia e tampouco queria duvidar; pois o primeiro clarão das velas sobre a tela afastara o onírico estupor que me roubou os sentidos, despertando-me à realidade.

O retrato, como disse-o, era o de uma jovem. Consistia-se apenas de uma cabeça e ombros, executado com o feitio do que tecnicamente costuma-se denominar de vinheta; ao estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o busto e as pontas dos radiantes cabelos dissolviam-se imperceptivelmente na vaga, mas profunda, sombra que formava o fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à maneira mourisca. Como obra de arte, nada poderia ser mais admirado do que aquela pintura em si. Entretanto, não teria sido a elaboração da obra, nem a imortal beleza daquela face, o que repentinamente e com tanta veemência alterou-me. Também não haveria de crer que minha fantasia, abalada de seu semi-repouso, confundira a cabeça com a de uma pessoa viva. Entendi que as peculiaridades do desenho, do vinhetado e da moldura, dissiparam instantaneamente esta idéia e devem ainda ter impedido qualquer distração momentânea. Ponderando seriamente acerca destes pontos, permaneci, quem sabe uma hora, meio sentado e meio reclinado, com a vista pregada ao retrato. Enfim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, caí de costas na cama. Descobrira o feitiço do quadro no que ele expressava de absoluta semelhança com a vida, a qual, de início espantou-me para em seguida me confundir, dominar e apavorar. Com grande e reverente receio, recoloquei o candelabro em sua posição anterior. Estando a causa de minha forte agitação colocada fora de vista, examinei ávido o volume com o estudo das pinturas e suas histórias. Buscando o número que designava o retrato oval, li as vagas e singulares palavras que se seguem:

“Era uma donzela de rara beleza, não mais amável do que cativa da alegria. Má foi a hora em que viu, amou e desposou o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, e tendo já em sua Arte uma noiva; ela, além de formosa e alegre, mostrava-se toda luz e sorrisos, e irrequieta como uma corça nova; amando e afagando todas as coisas; odiando unicamente a Arte, a sua rival; receando só a paleta, os pincéis e outros desfavoráveis instrumentos que a privavam de seu amado. Significava, portanto, algo terrível para esta dama ouvir o pintor falar de seu desejo de retratar sua jovem mulher. Contudo, por ser humilde e obediente, ela sentou-se ternamente por muitas semanas na umbrosa e alta câmara da torre, onde a luz alcançava a pálida tela somente do teto. Mas ele, o pintor, sublimava-se através de sua obra, que continuou por horas e horas, dias e dias. Apaixonado, impetuoso e taciturno, era um homem que se perdia em devaneios; não conseguia perceber que a luz que caía tão lúgubre naquela torre isolada debilitava a saúde e o espírito de sua mulher, que definhava visivelmente, consumindo-se para todos, exceto para ele. Prosseguia ela ainda a sorrir imóvel, sem reclamar, dado constatar que o pintor – que gozava de enorme reputação – adquiriu um arrebatado e ardente prazer em sua tarefa, e atravessava dia e noite para representar a que tanto o amava; a companheira que dia após dia arruinava-se e enfraquecia. E em verdade, os que olharam o retrato falaram, em voz baixa, de sua semelhança como de uma poderosa maravilha, e, não menos, prova da força do pintor tanto quanto de seu imenso amor pela que retratava tão insuperavelmente bem. Finalmente, como o trabalho aproximava-se de sua conclusão, ninguém mais era admitido na torre, visto que o pintor enlouquecera com o ardor de sua obra, raramente tirando os olhos da tela, mesmo para divisar o rosto da esposa; sequer percebendo que as tintas que espalhava sobre a tela eram tomadas das faces da que sentava ao seu lado. Assim, quando muitas semanas haviam transcorrido, e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada na boca e um retoque nos olhos, o espírito da dama novamente bruxuleou tal a chama de uma candeia. Então, feitos a pincelada e o retoque, por um momento, o pintor deteve-se extasiado ante a obra que realizara. Porém, enquanto ainda admirava-a, passou a tremer e empalideceu, gritando: ‘Isto de fato é a própria Vida’. Abruptamente, voltou-se para fitar sua amada: estava morta!”

Autor: Edgar Alan Poe
Tradução: Marcelo Bueno de Paula

O barril de amontilado



    Suportei o melhor que pude as mil e uma injúrias de Fortunato; mas quando começou a entrar pelo insulto, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza da minha índole, não ireis supor que me limitei a ameaçar. Acabaria por vingar-me; isto era ponto definitivamente assente, e a própria determinação com que o decidi afastava toda e qualquer idéia de risco. Devia não só castigar, mas castigar ficando impune. Um agravo não é vingado quando a vingança surpreende o vingador. E fica igualmente por vingar quando o vingador não consegue fazer-se reconhecer como tal àquele que o ofendeu.

    Deve compreender-se que nem por palavras, nem por atos, dei motivos a Fortunato para duvidar da minha afeição. Continuei, como era meu desejo, a rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da idéia da sua imolação.

    Tinha um ponto fraco, este Fortunato sendo embora, sob outros aspectos, homem digno de respeito e mesmo de receio. Orgulhava-se da sua qualidade de entendido em vinhos. Poucos italianos possuem o verdadeiro espírito de virtuosidade. Na sua maior parte, o seu entusiasmo é adaptado às circunstâncias de tempo e de oportunidade para ludibriar milionários britânicos e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, à semelhança dos seus concidadãos, era um charlatão, mas na questão de vinhos era entendido. Neste aspecto eu não diferia substancialmente dele: eu próprio era entendido em vinhos de reserva italianos, e comprava-os em grandes quantidades sempre que podia.

    Foi ao escurecer, numa tarde de grande loucura da quadra carnavalesca, que encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessivo calor, pois bebera de mais. Trajava de bufão; um fato justo e parcialmente às tiras, levando na cabeça um barrete cônico com guizos. Fiquei tão contente de o ver que julguei que nunca mais parava de lhe apertar a mão.

    - Meu caro Fortunato - disse eu -, ainda bem que o encontro. Você tem hoje uma aparência notável! Saiba que recebi um barril de um vinho que passa por ser amontillado; mas tenho cá as minhas dúvidas.

    - O quê? - disse ele - Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno Carnaval!

    - Tenho as minhas dúvidas - respondi -, e estupidamente paguei o verdadeiro preço do amontillado sem ter consultado o meu amigo. Não o consegui encontrar e tinha receio de perder o negócio!

    - Amontillado!

    - Tenho as minhas dúvidas - insisti.

    - Amontillado!

    - E tenho de as resolver.

    - Amontillado!

    - Como vejo que está ocupado, vou procurar Luchesi. Se existe alguém com espírito crítico, é ele. Ele me dirá.

    - Luchesi não distingue amontillado de xerez.

    - No entanto, há muito idiota que acha que o seu gosto desafia o do meu amigo.

    - Venha, vamos lá.

    - Aonde?

    - À sua cave.

    - Não, meu amigo, não exigiria tanto da sua bondade. Vejo que tem compromissos. Luchesi...

    - Não tenho compromisso nenhum, vamos.

    - Não, meu amigo. Não será o compromisso, mas aquele frio terrível que bem sei que o aflige. A cave é insuportavelmente úmida. Está coberta de salitre.

    - Mesmo assim, vamos lá. O frio não é nada. Amontillado! Você foi ludibriado. E quanto a Luchesi, não distingue xerez de amontillado.

    Assim falando, Fortunato pegou-me pelo braço. Depois de pôr uma máscara de seda preta e de envergar um roquelaire cingido ao corpo, tive que suportar-lhe a pressa que levava a caminho do meu palacete.

    Não havia criados em casa; tinham desaparecido todos para festejar aquela quadra. Eu tinha-lhes dito que não voltaria senão de manhã e dera-lhes ordens explícitas para se não afastarem de casa. Ordens essas que foram o suficiente, disso estava eu certo, para assegurar o rápido desaparecimento de todos eles, mal voltara costas.

    Retirei das arandelas dois archotes e, dando um a Fortunato, conduzi-o através de diversos compartimentos até à entrada das caves. Desci uma grande escada de caracol e pedi-lhe que se acautelasse enquanto me seguia. Quando chegamos ao fim da descida encontrávamo-nos ambos sobre o chão úmido das catacumbas dos Montresors.

    O andar do meu amigo era irregular e os guizos da capa tilintavam quando se movia.

    - O barril? - perguntou.

    - Está lá mais para diante - disse eu -, mas veja a teia branca de aranha que cintila nas paredes da cave.

    Voltou-se para mim e pousou nos meus olhos duas órbitas enevoadas pelos fumos da intoxicação.

    - Salitre? - perguntou por fim.

    - Sim - respondi. - Há quanto tempo tem essa tosse?

    - Cof!, cof!, cof! cof!, cof!, cof!

    O meu amigo ficou sem poder responder-me durante bastante tempo.

    - Não é nada - acabou por dizer.

    - Venha - disse-lhe com decisão. - Retrocedamos, a sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos. Você é um homem cuja falta se sentiria. Quanto a mim, não importa. Retrocedamos. Ainda é capaz de adoecer e não quero assumir tal responsabilidade. Além disso, há Luchesi...

    - Basta! - replicou. - A tosse não é nada, não me vai matar. Não vou morrer por causa da tosse.

    - Pois decerto que não, pois decerto - respondi -; não é minha intenção alarmá-lo desnecessariamente, mas deve usar de cautela. Um gole deste médoc defender-nos-á da umidade.

    Quebrei o gargalo de uma garrafa que retirei de uma longa fila de muitas outras iguais que jaziam no bolor.

    - Beba - disse, apresentando-lhe o vinho.

    Levou-o aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e abanou a cabeça significativamente, enquanto os guizos tilintavam.

    - Bebo - disse - aos mortos que repousam à nossa volta.

    - E eu para que você viva muito.

    Novamente me tomou pelo braço e prosseguimos.

    - Estas catacumbas são enormes - disse ele.

    - Os Montresors - respondi - constituíam uma família grande e numerosa.

    - Não me lembro do vosso brasão.

    - Um enorme pé humano, de ouro, em campo azul; o pé esmaga uma serpente rastejante cujas presas estão ferradas no calcanhar.

    - E a divisa?

    - Nemo me impune lacessit

    - Ótimo! - disse ele.

    O vinho brilhava no seu olhar e os guizos tilintavam. A minha própria disposição melhorara com o médoc. Tinha passado por entre paredes de ossos empilhados, à mistura com barris e barris, nos mais recônditos escaninhos das catacumbas. Parei novamente e desta vez fiz questão de segurar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.

    - Salitre! - disse eu -, veja como aumenta. Parece musgo nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade escorrem por entre os ossos. Venha, vamo-nos embora que já é muito tarde. A sua tosse...

    - Não faz mal - retorquiu -, continuaremos. Antes, porém, mais um trago de rnédoc.

    Abri e passei-lhe uma garrafa de De Grâve. Despejou-a de um trago. Os olhos brilharam-lhe com um fulgor feroz. Riu e atirou a garrafa ao ar, com uns gestos que não entendi.

    Olhei-o surpreso. Repetiu o movimento grotesco.

    - Não compreende?

    - Não, não compreendo - respondi.

    - Então não pertence à irmandade.

    - Como?

    - Quero eu dizer que não pertence à Maçonaria.

    - Sim, sim - disse -, sim, pertenço.

    - Você? Impossível! Um maçon?

    - Sim, um maçon - respondi.

    - Um sinal - disse ele.

    - Aqui o tem - retorqui, mostrando uma colher de pedreiro que retirei das dobras do meu roquelaire.

    - Está a brincar - exclamou, recuando alguns passos. - Mas vamos lá ao amontillado.

    - Assim seja - disse eu, tornando a colocar a ferramenta sob a capa e tornando a oferecer-lhe o meu braço. Apoiou-se nele pesadamente. Continuamos o nosso caminho em procura do amontillado. Passamos por uma série de arcos baixos, descemos, atravessamos outros, descemos novamente e chegamos a uma profunda cripta na qual a rarefação do ar fazia com que os archotes reluzissem em vez de arderem em chama.

    No ponto mais afastado da cripta havia uma outra cripta menos espaçosa. As paredes tinham sido forradas com despojos humanos, empilhados até à abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três das paredes desta cripta interior estavam ainda ornamentadas desta maneira. Na quarta parede, os ossos tinham sido derrubados e jaziam promiscuamente no solo, formando num ponto um montículo de certo vulto. Nessa parede assim exposta pela remoção dos ossos, percebia-se um recesso ainda mais recôndito, com um metro e vinte centímetros de fundo, noventa centímetros de largo e um metro e oitenta a dois metros e dez de alto. Parecia não ter sido construído com qualquer fim específico, constituindo apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e era limitado, ao fundo, por uma das paredes circundantes em granito sólido.

    Foi em vão que Fortunato, levantando o seu tíbio archote, tentou sondar a profundidade do recesso. A enfraquecida luz não nos permitia ver-lhe o fim.

    - Continue - disse eu -, o amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi...

    - É um ignorante - interrompeu o meu amigo, enquanto avançava, vacilante, seguido por mim. Num instante atingira o extremo do nicho, e vendo que não podia continuar por causa da rocha, ficou estupidamente desorientado. Um momento mais e tinha-o agrilhoado ao granito. Havia na parede dois grampos de ferro, distantes um do outro, na horizontal, cerca de sessenta centímetros. De um deles pendia uma pequena corrente e do outro um cadeado. Lançar-lhe a corrente em volta da cintura e fechá-la foi obra de poucos segundos. Ficara demasiado surpreendido para oferecer resistência. Retirei a chave e recuei.

    - Passe a mão pela parede - disse eu. - Não deixará de sentir o salitre. Na realidade está muito úmido. Mais uma vez lhe suplico que nos retiremos. Não lhe convém? Nesse caso, tenho realmente de o deixar. Mas, primeiro, quero prestar-lhe todas as pequenas atenções ao meu alcance.

    - O amontillado! - berrou o meu amigo, que se não recompusera ainda do espanto em que se encontrava.

    - É verdade - respondi. - O amontillado.

    Ao dizer isto, pus-me a procurar com todo o afã por entre as pilhas de ossos de que já falei. Atirando com eles para o lado, pus a descoberto uma quantidade de pedras e argamassa. Com estes materiais e com a ajuda da minha colher de pedreiro, comecei a entaipar com todo o vigor a entrada do nicho.

    Mal tinha colocado a primeira fiada de pedras quando descobri que a embriaguez de Fortunato tinha em grande parte desaparecido. A este respeito, o primeiro indício foi-me dado por um longo gemido vindo da profundidade do recesso. Não era o gemido de um ébrio. Sucedeu-se um prolongado e obstinado silêncio. Pus a segunda fiada de pedras, a terceira e a quarta. Em seguida ouvi as vibrações furiosas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para me ser possível ouvi-lo com maior satisfação, suspendi a minha tarefa e sentei-me no montículo de ossos. Quando finalmente cessou o tilintar, retomei a colher de pedreiro e completei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima fiadas. A parede estava agora quase ao nível do meu peito. Parei novamente e, elevando o archote acima do parapeito, fiz incidir alguns raios de luz sobre a figura que lá estava dentro.

    Uma sucessão de gritos altos e agudos, irrompendo de súbito da garganta da figura agrilhoada, quase me atirou violentamente para trás. Por um breve momento hesitei, tremi. Desembainhei o florete e com ele comecei a tatear o recesso, mas bastou pensar um momento para voltar a sentir-me seguro. Coloquei a mão sobre a sólida construção das catacumbas e fiquei satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede. Respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os como um eco, juntei-me a eles, ultrapassei-os em volume e força. Depois disto, o outro sossegou.

    Era agora meia-noite e a minha tarefa aproximava-se do fim. Completara já a oitava, a nona e a décima fiadas. Tinha acabado uma porção da décima primeira e última; faltava apenas colocar e fixar uma pequena pedra. Lutava com o seu peso; coloquei-a parcialmente na posição que lhe cabia. Soltou-se então do nicho um riso abafado que me arrepiou os cabelos. Seguiu-se uma voz triste que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. Dizia aquela voz:

    - Ah!, ah!, ah!, he!, he!, boa piada, de fato, excelente gracejo. Havemos de rir bastante acerca disto, lá no palácio, he!, he!, he!, acerca do nosso vinho, he!, he!, he!

    - O amontillado? - disse eu.

    - he!, he!, he!, he!, he!, he!, sim, o amontillado. Mas não estará a fazer-se tarde? Não estarão à nossa espera no palácio lady Fortunato e os convidados? Vamo-nos embora.

    - Sim - disse eu -, vamo-nos.

    - Pelo amor de Deus, Montresor!

    - Sim - disse eu -, pelo amor de Deus!

    Em vão esperei uma resposta a estas palavras. Comecei a ficar impaciente. Chamei em voz alta:

    - Fortunato!

    Não obtive resposta. Chamei novamente:

    - Fortunato!

    Continuei sem resposta. Meti um archote pela pequena abertura e deixei-o cair lá dentro. Em resposta ouvi apenas um tilintar de guizos. Senti o coração oprimido, dada a forte umidade das catacumbas. Apressei-me a pôr fim à minha tarefa. Forcei a última pedra no buraco, e fixei-a com a argamassa. De encontro a esta nova parede tornei a colocar a velha muralha de ossos. Durante meio século nenhum mortal os perturbou. In pace requiescat!

Autor: Edgar Alan Poe

A mascara da morte escarlate


Havia muito tempo que a “Morte Escarlte” devastava todo o país. Jamais uma peste fora tão letal e tão terrível. O sangue era a sua encarnação e o seu sinal: o vermelho e o horror do sangue. Começava com dores agudas, com um desvanecimento súbito, e logo os poros se punham a sangrar abundantemente. Sobrevinha, então, a decomposição. Manchas escarlates no corpo e, notadamente, no rosto da vítima, segregavam-na da humanidade e a afastavam de todo socorro e de toda compaixão. O contágio, o progresso e o fim da enfermidade consumiam apenas meia hora.

Mas o Príncipe Próspero era feliz, intrépido e sagaz. Quando os seus domínios minguaram à metade de almas vivas, convocou um milhar de amigos fortes e de corações alegres, escolhidos entre os cavalheiros e damas da sua corte. E, com eles, formou um refúgio recôndito em uma de suas abadias fortificadas. Tratava-se de uma vasta e magnífica construção, criação dele mesmo, o Príncipe, conforme seu gosto excêntrico e majestoso. Rodeava a construção um muro espesso e elevado, guarnecido de portões de ferro. Uma vez transpostos os muros pelos cortesãos, estes se serviram de fornalha e de vigorosos martelos para soldar os ferrolhos. Deliberaram entrincheirar-se contra os súbitos impulsos ou os desesperos provenientes do exterior e lacrar todas as saídas aos frenesis do interior.

A abadia estava amplamente abastecida. Graças a tais cuidados, os cortesãos poderiam enfrentar o contágio. Que o exterior se arranjasse como pudesse. De sua feita, seria uma loucura afligir a alma com meditações sobre a peste. O príncipe havia fornido aquele refúgio com todos os meios prazerosos. Havia bufões, improvisadores, bailarinos, músicos, formosuras de todas as espécies. E havia, também, o vinho. Todas essas belas coisas havia no interior, além da segurança. Lá fora, disseminava-se a “Morte Escarlate”.

Foi ao fim do quinto ou sexto dia em seu refúgio, enquanto a peste fazia grande estragos além das muralhas, que o Príncipe Próspero proporcionou aos convivas um baile de máscaras da mais insólita magnificência.

Que quadro voluptuoso era o baile de máscaras! Permitam-me descrever os salões onde a festança ocorreu. Havia uma série de sete salões imperiais. Em muitos palácios, esta série de salões forma amplas perspectivas, em linha reta, quando as portas se descerram de par em par, de tal forma que a vista penetra até o fundo, sem qualquer obstáculo. Aqui, o caso era assaz diferente, como se era de esperar da parte daquele Duque e de sua inclinação pelo bizarro. Estavam as salas dispostas de forma tão irregular que a vista não poderia compreender senão um salão de cada vez. Ao término de um espaço de vinte ou trinta jardas, via-se uma brusca curva e, a cada esquina, o ambiente assumia um aspecto diferente. À direita e à esquerda, e ao meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica abria-se para um corredor fechado, que seguia a sinuosidade dos cômodos.

Cada janela era guarnecida de vitrais cujas cores harmonizavam-se com a tonalidade dominante da decoração do salão para o qual se abria. O que ocupava a extremidade oeste, por exemplo, era decorado de azul e os vitrais eram de um azul vívido. O segundo dos salões era decorado e guarnecido de cor púrpura e os vitrais eram igualmente púrpuras. O terceiro era completamente verde e verdes eram também as janelas. O quarto, alaranjado, estava iluminado por uma janela de igual cor. O quinto era branco e o sexto, violeta. O sétimo era rigorosamente forrado por tapeçaria de veludo negro, que revestia o teto e as paredes, e que caía em pesadas rugas sobre um tapete do mesmo material e de mesma cor. Mas, neste salão, a cor dos vitrais não correspondia ao da decoração: os vitrais eram escarlates, de uma tonalidade intensa de sangue.

Ora, em nenhuma daquelas salas se viam lâmpadas ou candelabros em meio à profusão de adornos em ouro, que se espalhavam em todos os cantos, ou se dependuravam ao teto. Não havia lâmpadas ou velas. Luz alguma dessa natureza emanava na seqüência de salas. Porém, nos corredores que as envolviam, exatamente em frente de cada janela, elevava-se uma pesada trípode com um braseiro, a projetar seus raios através dos vitrais coloridos, iluminando deslumbrantemente a sala. Perfazia-se uma miríade de formas cambiantes e fantásticas. Mas, na sala voltada ao poente, na câmara negra, a claridade do braseiro, que se refletia sobre as negras tapeçarias, através dos vitrais sangrentos, era sobremodo sinistra e incidia sobre as faces dos imprudentes que ali entravam, conferindo-lhes um aspecto de tal forma estranho que muito poucos dançarinos se sentiam com suficiente coragem para penetrar no recinto.

Também nesse salão se erguia, amparado no muro oriental, um gigantesco carrilhão de ébano. Seu pêndulo oscilava com um tic-tac surdo, pesado, monótono; em quando os ponteiros dos minutos haviam percorrido todo o seu círculo, e a hora se completava, provinha dos pulmões de bronze um som claro, estrepitoso, profundo e extraordinariamente musical, mas de um timbre tão regular que, de hora em hora, os músicos da orquestra eram obrigados a interromper por alguns segundos a execução, para escutar a música das horas; e os dançarinos cessavam, à força, as suas evoluções. Uma momentânea perturbação grassava aquela multidão alegre e, enquanto soava o carrilhão, era possível notar que até os mais arrojados empalideciam e os de maior idade e reflexão passavam a mão à fronte, como se abandonados a uma meditação confusa ou a um devaneio. E, mal se dissipava o eco das horas, circulava no ambiente leves risadas. Os músicos olhavam uns aos outros e se riam dos próprios nervos e da própria loucura; e juravam, em voz baixa, que, da próxima vez em que soasse o carrilhão, não sentiriam o mesmo desconforto. Mas, no entanto, quando decorridos os sessenta minutos da hora desaparecida, que continha os três mil e seiscentos segundos; quando irrompia uma nova batida do relógio fatal, reproduzia-se o mesmo estremecimento, os mesmos calafrios e os mesmos devaneios febris.

Apesar disto, a orgia continuava alegre e magnífica. O gosto do Duque era especialmente singular. Tinha a vista apurada para as cores e aos efeitos que estas produziam. Desdenhava dos gostos da moda. Seus planos eram temerários e selvagens e suas concepções brilhavam com um bárbaro esplendor. Alguns o julgavam louco. Mas os seus cortesãos sabiam que não. Todavia, era preciso vê-lo, toca-lo, para assegurarem-se de que ele não estava de fato ensandecido.

Para esse baile, havia o príncipe se ocupado, pessoalmente, da decoração do mobiliário das salas e foi o seu gosto pessoal que elegera o estilo das máscaras. Dúvidas não pode haver de que eram concepções grotescas. Tudo era deslumbrante e brilhante. Havia coisas chocantes, fantásticas, muito do que depois foi visto no “Hernani”. Havia figuras arabescas, com membros e adornos desconformes; fantasias delirantes como a loucura. Havia muito de belo, de licencioso, de bizarro; algo de terrível e não pouco do que produzia repugnância.

Era como se uma miríade de sonhos deslizasse de um lado para o outro nas sete salas. E tais sonhos se contorciam em todos os sentidos, tomando a cor dos salões, fazendo com que a estranha música da orquestra parecesse o eco de seus próprios passos. Mas logo soava o relógio de ébano no salão dos veludos. Então, por um momento, tudo se detinha, tudo emudecia, salvo o ecoar do relógio. Tudo se congelava em suas posturas. Mas os ecos do carrilhão se desvaneceram – não duraram senão um momento –, e, mal se extinguiram, as gargalhadas, mal reprimidas, ecoavam por todos os cantos. E a música voltava a tocar, reavivando os sonhos; aqui e ali os dançarinos retomavam as evoluções, mais alegre do que nunca, refletindo a cor dos vitrais atrás dos quais fluíam os raios da trípoda. Porém, no salão do extremo ocidental, não havia máscara alguma que se atrevesse a penetrar, porque a noite declinava. Ali se descerrava uma luz de um escarlate profundo, através dos vitrais cor de sangue, e a escuridão das cortinas tingidas de negro era aterradora. E, para aqueles que punham os pés sobre os tapetes, brotava do relógio de ébano um clangor ainda mais pesado, mais solenemente enérgico que o que chegava aos ouvidos dos mascarados que se divertiam nos salões mais distantes.

Mas esses outros salões estavam repletos e o coração da vida ali febrilmente pulsava. E o baile continuava, chegava ao seu ápice, quando do carrilhão soou a meia-noite. Então, como já se disse, a música parou; os que dançavam detiveram-se em suas evoluções. E a angustiante imobilidade a tudo dominou. Agora, porém, o carrilhão bateria doze vezes. Desta vez, porque ecoou o mais longamente o carrilhão, inseriram-se nos pensamentos dos que se atiravam à diversão um maior volume de meditações. E talvez, por isso mesmo, muitos do que compunham a multidão, antes de se esgotarem os derradeiros ecos das últimas horas dadas, puderam perceber a presença de um mascarado que, até aquele instante, ninguém notara. E, tendo se espalhado, aos sussurros, a notícia daquela intrusão, insinuou-se na multidão um murmúrio indicativo de surpresa e desaprovação, que evoluiu para o terror, horror e repugnância.

Numa multidão fantasmagórica como a que descrevi, era necessário, sem dúvidas, que fosse a aparição absolutamente extraordinária para ensejar tal sensação. A licenciosidade carnavalesca daquela noite era, realmente, quase sem limites. Mas a personagem em questão havia transcendido à extravagância de um Herodes e ultrapassado os amplos limites do decoro que o Príncipe estabelecera. Há nos mais temerários corações cordas que não se deixam tocar sem emoções. Até entre os depravados, para quem a vida e a morte são igualmente um brinquedo, há coisas com as quais não se pode brincar. Os convivas pareciam sentir, profundamente, a inconveniência dos os trajes e da conduta do estranho. Era ele alto e delgado. Estava envolto com uma mortalha funerária da cabeça aos pés. A máscara, que lhe ocultava as faces, reproduzia fielmente o semblante de um rígido cadáver, que um exame apurado teria dificuldades em perceber o engano. Ora, aquela frenética multidão bem poderia tolerar, e mesmo aprovar, aquela desagradável figura, acaso o mascarado não tivesse adotado a representação da “Morte Escarlate”. Suas roupas estavam enodoadas de sangue e a sua ampla testa, assim como as suas feições, salpicadas do horror escarlate.

Quando os olhos do Príncipe Próspero focaram a espectral figura – que, com solenes e enfáticos movimentos, feitos para melhor representar o seu papel, evoluía aqui e ali entre os dançarinos –, caiu numa violenta comoção e estremecimento, tomado pelo terror e pela repugnância. E, segundos depois, sua fronte se enegreceu de ira:

- Quem se atreve – perguntou com rouca voz aos cortesãos que o rodeavam -, quem ousa a nos insultar com esta ironia blasfema? Segurem-no e desmascarem-no, para que saibamos a quem iremos enforcar, nos altos das almeias, ao amanhecer!

Encontrava-se o Príncipe Próspero, ao pronunciar estas palavras, no salão oriental, ou câmara azul, e a voz do Príncipe Próspero ressonou potente e clara pelos sete salões, pois o Príncipe era um homem impetuoso e forte, e a música havia cessado a um gesto de sua mão. Estes fatos ocorriam no salão oriental, sendo o Príncipe ladeado por um grupo de pálidos cortesãos. No início, enquanto falava o Príncipe, o grupo se movimentou, levemente, na direção do intruso, que esteve, por um momento, quase ao alcance de suas mãos, mas que agora, com passos firmes e majestosos, se acercava cada vez mais do Príncipe. Mas, em razão do indefinível terror que a audácia do mascarado havia inspirado em todos aqueles que ali se reuniam, ninguém estendeu a mão para agarrá-lo, mesmo quando, sem qualquer obstáculo, passou a dois passos da pessoa do Príncipe. E tanto que a mesma assembléia, como que obediente a um só movimento, recuou do centro do salão às paredes. O mascarado seguiu, sem interrupção, o seu caminho, com os mesmos passos solenes e bem medidos, com os quais, desde o início, se distinguira, passando da sala azul à púrpura; da sala verde à alaranjada; e desta à branca; e da branca à violeta, sem que houvesse quem o detivesse.

Então o Príncipe Próspero, tomado de ira e de vergonha pela covardia momentânea, precipitou-se através das seis salas, sem que ninguém o seguisse, porque um temor mortal se apoderara de todos os convivas. Brandiu um punhal e se aproximou a uma distância de três ou quatros passos do fantasma que se retirava, quando este último, ao aproximar-se da sala de veludo, voltou-se bruscamente, afrontando aquele que o perseguia.

Ecoou um grito agudo e o punhal caiu, como um relâmpago, sobre o tapete fúnebre, onde o Príncipe o Príncipe Próspero tombou morto, instantaneamente. Então, invocando a frenética coragem do desespero, a multidão de mascarados precipitou-se à sala negra, e, agarrando-se ao desconhecido, que se mantinha imóvel e ereto como uma grande estátua à sombra do carrilhão, viu-se presa de um terror inominável, ao perceber que não havia forma tangível alguma sob a mortalha e sob a máscara cadavérica. Todos reconheceram, então, que ali estava presente a “Morte Escarlate”. Ela se insinuara como um ladrão noturno.

E todos os convivas tombaram, um a um, nos salões das orgias, manchados de sangue, morrendo na mesma postura desesperada com a qual desabaram.

E a vida do relógio de ébano se extinguiu com a do último daqueles seres licenciosos. E murcharam as chamas das trípodas. E as Trevas, e a Ruína e a “Morte Escarlate” deitaram sobre tudo o seu ilimitado domínio.

Autor: Edgar Allan Poe
Tradução: José Jaeger (jaegerjose@gmail.com)

domingo, 24 de julho de 2011

As formigas

Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite.
Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada.
Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
– É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha?
Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas
pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a
dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
– Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta
de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
– É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção.
– Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se:
– Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
– Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
– Ele disse que eram de adulto. De um anão.
– De um anão? é mesmo, a gente vê que já estão formados9 Mas que maravilha, é raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
– Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone
também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto naescada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais
alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
– Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
– De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
– É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum
ponto do assoalho.
– Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
– Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do baixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
– São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
– Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
– Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. – Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.
– Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
– Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vem fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do baixotinho.
– Esquisito. Muito esquisito.
– O quê?
– Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
– Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa
desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, a procura delas
. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto. Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão
abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei:
– E as formigas?
– Até agora, nenhuma.
– Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
– Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
– Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo9 Mas então quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
– Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi
água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que
chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
– Elas voltaram.
– Quem?
– As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
– E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi
isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão9 estão se organizando.
– Como, organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
– Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna
vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e Venha ver!
– Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas
na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
– Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
– Estou com medo. Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
– Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
– Voltaram – ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
– Estão aí?
Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz.
– Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava9
– Que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
– Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
– Você está falando sério?
– Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
– Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
– Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta.
– E para onde a gente vai?
– Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.

Autora: Lygia Fagundes Telles