sábado, 30 de julho de 2011

O retrato oval

O castelo em que meu criado obrigara-se a forçar a entrada, evitando de deixar-me, em minha desesperada condição de ferido, passar a noite ao relento, era uma daquelas construções mesclando melancolia e grandeza que durante muito tempo elevaram-se entre os Apeninos, seja na realidade ou na imaginação da Sra. Radcliffe. Tudo indicava seu abandono temporário e recente. Acomodamo-nos num dos quartos menores e menos suntuosamente mobiliados. Este, situado num remoto torreão do edifício. Sua decoração era rica, porém avariada e antiga. As paredes assentavam tapeçarias e exibiam diversos e multiformes troféus heráldicos, juntamente com uma desusada abundância de espirituosas pinturas modernas em molduras de ricos arabescos dourados. Tais pinturas pendiam das paredes não só de suas principais superfícies, mas de muitos recessos que a bizarra arquitetura do castelo julgara necessários; telas a que talvez meu incipiente delírio investiu-me de profundo interesse. Em razão disso, tratei de ordenar a Pedro o fechamento dos fortes postigos do cômodo – pois anoitecera –, o acendimento de um alto candelabro que se encontrava à cabeceira de minha cama e a abertura completa das franjadas cortinas de veludo negro que envolviam o leito. Queria que tudo fosse arrumado para que pudesse, caso não adormecesse, distrair-me entre a contemplação das pinturas e a leitura de um pequeno volume que achara sobre o travesseiro, contendo a crítica e a descrição delas.

Por longo, longo tempo li, e devotadamente fitei as obras. Rápidas e gloriosas, as horas voaram trazendo a meia-noite. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade, para não perturbar o sono de meu criado, mudei-o a fim de que sua luz incidisse mais em cheio sobre o livro.

Todavia, a ação produziu um efeito imprevisto. Os raios das numerosas velas – eram muitas – agora iluminavam um nicho do quarto que até aquele momento estivera coberto em intensa penumbra por uma das colunas do leito. Deste modo acabei vendo, assomado pela vívida luz, um quadro que não notara antes. Era o retrato de uma jovem, quase mulher feita. Olhei-o rapidamente e fechei os olhos. Não logrei explicar a princípio os motivos de meu ato à minha própria percepção. Mas enquanto tinha as pálpebras destarte fechadas, recapitulei na mente minha reação de tê-las descido. Fora um movimento impulsivo com o intuito de ganhar tempo para pensar, certificar-se de que os olhos não me enganaram, acalmar e predispor minha fantasia para uma observação mais moderada e racional. Instantes depois, novamente fixei o olhar na pintura.

O que agora via, não poderia e tampouco queria duvidar; pois o primeiro clarão das velas sobre a tela afastara o onírico estupor que me roubou os sentidos, despertando-me à realidade.

O retrato, como disse-o, era o de uma jovem. Consistia-se apenas de uma cabeça e ombros, executado com o feitio do que tecnicamente costuma-se denominar de vinheta; ao estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o busto e as pontas dos radiantes cabelos dissolviam-se imperceptivelmente na vaga, mas profunda, sombra que formava o fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à maneira mourisca. Como obra de arte, nada poderia ser mais admirado do que aquela pintura em si. Entretanto, não teria sido a elaboração da obra, nem a imortal beleza daquela face, o que repentinamente e com tanta veemência alterou-me. Também não haveria de crer que minha fantasia, abalada de seu semi-repouso, confundira a cabeça com a de uma pessoa viva. Entendi que as peculiaridades do desenho, do vinhetado e da moldura, dissiparam instantaneamente esta idéia e devem ainda ter impedido qualquer distração momentânea. Ponderando seriamente acerca destes pontos, permaneci, quem sabe uma hora, meio sentado e meio reclinado, com a vista pregada ao retrato. Enfim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, caí de costas na cama. Descobrira o feitiço do quadro no que ele expressava de absoluta semelhança com a vida, a qual, de início espantou-me para em seguida me confundir, dominar e apavorar. Com grande e reverente receio, recoloquei o candelabro em sua posição anterior. Estando a causa de minha forte agitação colocada fora de vista, examinei ávido o volume com o estudo das pinturas e suas histórias. Buscando o número que designava o retrato oval, li as vagas e singulares palavras que se seguem:

“Era uma donzela de rara beleza, não mais amável do que cativa da alegria. Má foi a hora em que viu, amou e desposou o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, e tendo já em sua Arte uma noiva; ela, além de formosa e alegre, mostrava-se toda luz e sorrisos, e irrequieta como uma corça nova; amando e afagando todas as coisas; odiando unicamente a Arte, a sua rival; receando só a paleta, os pincéis e outros desfavoráveis instrumentos que a privavam de seu amado. Significava, portanto, algo terrível para esta dama ouvir o pintor falar de seu desejo de retratar sua jovem mulher. Contudo, por ser humilde e obediente, ela sentou-se ternamente por muitas semanas na umbrosa e alta câmara da torre, onde a luz alcançava a pálida tela somente do teto. Mas ele, o pintor, sublimava-se através de sua obra, que continuou por horas e horas, dias e dias. Apaixonado, impetuoso e taciturno, era um homem que se perdia em devaneios; não conseguia perceber que a luz que caía tão lúgubre naquela torre isolada debilitava a saúde e o espírito de sua mulher, que definhava visivelmente, consumindo-se para todos, exceto para ele. Prosseguia ela ainda a sorrir imóvel, sem reclamar, dado constatar que o pintor – que gozava de enorme reputação – adquiriu um arrebatado e ardente prazer em sua tarefa, e atravessava dia e noite para representar a que tanto o amava; a companheira que dia após dia arruinava-se e enfraquecia. E em verdade, os que olharam o retrato falaram, em voz baixa, de sua semelhança como de uma poderosa maravilha, e, não menos, prova da força do pintor tanto quanto de seu imenso amor pela que retratava tão insuperavelmente bem. Finalmente, como o trabalho aproximava-se de sua conclusão, ninguém mais era admitido na torre, visto que o pintor enlouquecera com o ardor de sua obra, raramente tirando os olhos da tela, mesmo para divisar o rosto da esposa; sequer percebendo que as tintas que espalhava sobre a tela eram tomadas das faces da que sentava ao seu lado. Assim, quando muitas semanas haviam transcorrido, e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada na boca e um retoque nos olhos, o espírito da dama novamente bruxuleou tal a chama de uma candeia. Então, feitos a pincelada e o retoque, por um momento, o pintor deteve-se extasiado ante a obra que realizara. Porém, enquanto ainda admirava-a, passou a tremer e empalideceu, gritando: ‘Isto de fato é a própria Vida’. Abruptamente, voltou-se para fitar sua amada: estava morta!”

Autor: Edgar Alan Poe
Tradução: Marcelo Bueno de Paula

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