Comentário crítico
A longa e produtiva carreira poética de Cassiano Ricardo
- dezenove títulos de inéditos entre 1915 e 1971 - reflete a história da
literatura de seu tempo: tendo se lançado com versos de fundo parnasiano,
cultiva o modernismo verde-amarelo, a partir de 1926, passando a um lirismo
reflexivo, ao fim dos anos 1940, e à proximidade com as experiências de
vanguarda, na década de 1960. A despeito, entretanto, do que possa sugerir a
identificação de fases em sua trajetória, esta obra apresenta intensa unidade,
no que diz respeito tanto aos temas aos quais se dedica o poeta quanto à
ideologia que define o posicionamento do autor.
A comparação entre três poemas de temática semelhante
ilustra a evolução sem rupturas de Cassiano Ricardo. O soneto "Marcha
Fúnebre", de Dentro da Noite (1915), livro de estreia, retrata um eu
lírico que, ao ouvir a melodia lúgubre, passa a se questionar a respeito da
passagem do tempo. A interrogação surge, conforme narrado, na segunda quadra:
"A saudade, a amargura, a dúvida, a agonia/ irrompem dentro em mim, num
brusco desenlace,/ e entre a dor que me fere e o som que me extasia/ uma ideia,
em meu ser contraditório, nasce", e levará o sujeito a concluir, no verso
final: "lá vou eu conduzindo o enterro de mim mesmo". O trecho
evidencia a proximidade com a dicção parnasiana, a partir de elementos como a
sintaxe rigorosa, o vocabulário culto, a nomeação dos quatro sentimentos no
primeiro verso e a autonomia conferida a uma "ideia" que
"nasce" no "ser".
Já em "Percurso", de Jeremias Sem-Chorar
(1964), o poeta retomará a mesma preocupação, mas com significativas diferenças
estéticas: "Mas o tempo/ ponte que cresceu/ entre mim e eu./ E por onde
vim.// No enterro/ de cada minuto,/ pergunto:/ quem morreu/ em mim?". A
metáfora do enterro que encerrava o soneto de 1915 torna-se mais concisa,
intensificando a tópica da passagem do tempo. Os versos dodecassílabos dão
lugar aos livres, de ritmo leve e ligeiro. Já não há, ademais, o encerramento
do conflito em uma metáfora, permanecendo a suspensão.
Entre um e outro, haverá também os versos longos, porém
livres, deste poema de João Torto e a Fábula (1956): "Um dia conversarei
com os meus mortos/ E todos os que morri (os muitos eus que fui)/ reunidos
inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão/ me contarão (sua) a minha
história". No excerto, o retrato da fragmentação do eu traz ainda a
elevação conferida à problemática existencial.
O recurso adotado no soneto "Marcha Fúnebre",
de 1915, retornará em "Café Expresso", um dos mais conhecidos poemas
de Martim Cererê (1928), livro considerado o ápice da fase modernista de
Cassiano Ricardo. Também aqui um elemento sensitivo desperta o insight no
sujeito poético: "A minha xícara de café/ é o resumo de todas as coisas
que vi na fazendo e me vêm à memória apagada". Neste caso, porém, trata-se
de um produto nacional - o café -, e o foco não está apenas na passagem do
tempo, mas no contraponto entre o homem adulto, habitante de uma São Paulo
acelerada e industrializada, e o menino crescido no campo.
De acordo com Luiza Franco Moreira, a relação entre
presente urbano e passado rural está no centro da estrutura do livro de 1928,
compondo o "emparelhamento contraditório de menino e adulto" que
exprimirá a tese política do autor. Pois o mito da identidade brasileira criado
em Martim Cererê conjuga episódios históricos e elementos do folclore em uma
construção que, equiparando as expedições bandeirantes ao ciclo de exploração
do café, coloca a metrópole paulista como o destino da nação - de maneira a subordinar
toda a população à pequena parcela privilegiada da cidade. O menino Martim
Cererê, saci oferecido como alegoria do Brasil, revela, nesse sentido, a
inclinação paternalista e autoritária da obra: o país, como menino ao mesmo
tempo encantador e imaturo, mereceria afeto e careceria de orientação.
A mesma tese, embora em chave não literária, é o
fundamento do ensaio Marcha para o Oeste (1940), em que a visão positiva sobre
a miscigenação se soma à crença no pioneirismo das Bandeiras, resultando na
"concepção do Estado forte como fruto de nossa esvolução histórica",
conforme afirma Antonio Candido (1918). A preocupação com um programa
essencialmente nacional é patente também nos ensaios sobre literatura escritos
por Cassiano Ricardo. A defesa de uma postura participativa por parte do
intelectual formula-se, nesses textos, como uma busca pelo que há de
propriamente brasileiro.
Não à toa, Martim Cererê foi adotado em escolas, e
Cassiano Ricardo aproximou-se ao Estado Novo, servindo ao projeto de Getúlio de
Vargas. Por essa razão e a despeito das composições em que demonstra perfeita
consciência dos recursos poéticos, "para o [seu] público contemporâneo,
Cassiano é o poeta de Martim Cererê; para os críticos, um escritor modernista
de importância histórica, e para os historiadores, um ideólogo estadonovista",
segundo resume Moreira.
Dados extraídos do site: www.itaucultural.org
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